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Opinião

Crónicas Avulsas – Crónicas do Largo da Bica

A informação passou em rodapé num qualquer canal de televisão espanhol. Não memorizei qual deles. Percorria-os aleatoriamente premindo compulsivamente o botão do comando, entediado por não encontrar algo que justificasse o meu interesse. Seriam meados de Março e não lhe dei importância: falava do falecimento do compositor Antón Garcia Abril.

Não fazia a mínima ideia de quem seria o senhor objecto de tamanho destaque! Mais à frente, pressionados outros botões, noutro canal, um jornalista pesaroso empenhava-se no desenvolvimento da notícia. O realizador enquadrara a locução com um som que de imediato reconheci como sendo o da banda sonora da inesquecível série televisiva de Félix Rodriguez de la Fuente: “ El Hombre y La Tierra”.  

Instantaneamente, percebi que quem falecera fora o autor da música que identificava o programa que tantas vezes me prendeu na adolescência ao écran da Grundig a preto e branco lá de casa. Se bem me recordo, as emissões aguardadas ansiosamente por toda a família eram semanais e, antecipava em décadas um modelo ainda hoje tão apreciado e divulgado em canais especializados e que procura desvendar e aproximar de nós os segredos da vida animal em comunhão plena com a natureza: como interagem, como acasalam e procriam, como uns servem de alimento a outros!

Dos muitos episódios que vi e revi ao longo dos anos, das inolvidáveis memórias daí resultantes, recordo impactantes e inovadoras filmagens obtidas necessariamente com enorme esforço e muita paciência em perigosos terrenos escarpados, algures nalgumas das cadeias montanhosas existentes na nossa península Ibérica, focadas em inacessíveis ninhos de pesados e desajeitados abutres ou os de esguias águias de afiadas garras e bicos curvos: acompanhávamos o crescimento e fortalecimento dos seus filhotes, assim como o titânico esforço dos progenitores para lhes proporcionarem segurança, conforto e alimento.

Desse contexto narrado de forma a suscitar emoções fortíssimas no espectador sentado confortavelmente no sofá de sua casa, ainda hoje revivo com facilidade o interminável voo circular dessas sublimes aves de grande porte a patrulhar a partir de muito acima, os vales lá muito abaixo. As belas imagens mostravam-nas a aproveitar as correntes de ar ascendentes, a planar com uma aparente ausência de esforço, a sondar minuciosamente a eventual presença e movimentos de presas camufladas junto ao solo, entre a vegetação rasteira e as muitas pedras ou a existência de algum cadáver de animal que lhes proporcionasse o alimento necessário à sua sobrevivência e da sua família.

Félix Rodrigues de la Fuente, com a sua voz tão característica que o distinguia sem margem para qualquer dúvida, referindo-se à perspectiva aérea das aves nas suas constantes rondas pelo seu território de caça, ilustrava essas imagens com apropriadas frases como: “ à vista de pássaro”.

Por esses tempos, um outro famoso aventureiro e oceanógrafo, Jacques-Yves Cousteau, inventor do escafandro autónomo, percorria incessantemente os gigantescos mares que se estendem em volta do planeta a bordo do seu famoso navio Calypso, fazendo estudos dos diferentes oceanos e pesquisas acerca da vida marinha.

Secundado e apoiado pelo filho Philippe, exímio mergulhador e director responsável da grande maioria das filmagens subaquáticas, posteriormente divulgadas mundialmente através da National Geographic, precocemente falecido no nosso rio Tejo num estúpido acidente envolvendo um hidroavião, proporcionaram-nos uma outra perspectiva da vida existente nos oceanos, bem diferente da dos mitos criados desde a mais remota antiguidade repletos de terríveis monstros: aquela que nem sonhávamos que existia abaixo da superfície marítima, a partir de surpreendentes filmagens conseguidas por mergulhadores interagindo com a fauna marítima.

Uns anos depois, numa manhã antes do almoço, um velho amigo entrou na recepção da empresa onde eu trabalhava. Veio até mim com um sorriso e um brilho no olhar indiciadores de absoluta felicidade: para mim, sinal claro de que o problema de saúde que tão duramente o afligira estava ultrapassado ou, no mínimo, controlado!

No auge de agudíssima crise, havia-me chegado notícias de que receando eventuais consequências negativas de uma inadiável intervenção cirúrgica, ele teria tentado evitá-la a todo o custo.

Do lado de trás da secretária de atendimento, com sincera e real preocupação, interessei-me pela sua saúde. Não foi necessário perguntar mais nada: às secas, sem aviso prévio, em plena recepção, desapertou o cinto, desabotoou os botões da breguilha e, num movimento inesperado e brusco, surpreendentemente, baixou as calças e as cuecas para me mostrar a algália que lhe saía pela ponta do pénis!

Com as calças em baixo, a segurar o “material” entre o indicador e o polegar da mão direita, tentando explicar-me os pormenores da intervenção cirúrgica, não se apercebeu que uma senhora entrara pouco depois dele e estacara na sua retaguarda de olhos esbugalhados a mirar-lhe o rabo.

Aos meus cerca de trinta anos, jamais havia sido confrontado com tão constrangedora ocorrência: por um lado, a senhora que acabara de entrar, parada logo atrás do traseiro peludo do meu amigo e, do outro lado da secretária, com visão frontal para a algália de cor azul com uma tampinha que se retirava em caso de aflição para alívio imediato, absolutamente assombrado, estava eu.

Poderemos afirmar que a inusitada circunstância proporcionou duas diferentes perspectivas ou, se assim quisermos, dois diferentes pontos de vista de um determinado acontecimento, ambos consequência da percepção parcelar dessa realidade, todavia, bem mais abrangente do que aquilo que os sentidos dos indivíduos envolvidos em cada parcela observada captam e entendem.

Assim, deste modo, conclui-se que emitir opiniões ou arriscar decidir a partir de simples observações parcelares de uma determinada realidade, pela elevada subjectividade associada, pode revelar-se um exercício sujeito a tremendas falhas e expor-nos a decisões injustas.

Henrique Bonança

VRSA – 25 de Junho de 2021  

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