Morreu o poeta farense Ferradeira de Brito

Abílio de Brito

por José Carlos Vilhena de Mesquita

Não existindo na cidade de Faro, capital do Algarve, qualquer órgão de informação local, têm sido as redes sociais, a colmatar essa brecha. Foi desse modo que tivemos conhecimento da morte do poeta Abílio Ferradeira de Brito, um cidadão quase anónimo, como são todos os que se escondem por detrás da sua natural humildade.

Não nasceu pobre nem experimentou dificuldades, porém a sua educação pouco avançou para além dos bancos da escola elementar. Também não foi um iletrado, porque fez a sua instrução de forma livre, lendo e aprendendo como um autodidacta.

As suas convicções de ordem social, advinham-lhe das ideias políticas que granjeou no convívio da leitura solitária. Não precisava, dizia ele, de saber filosofia para entender as razões que dividiam os homens ou de perceber os interesses que impediam a paz no mundo. Usava os sentidos e, sobretudo, aquilo a que chamava a «razão reflectida», para descobrir onde estava a verdade, a justiça e a lealdade.

Tinha uma alma sensível e um coração emotivo, profundamente sentimental. Eram, aliás, essas as qualidades que transpareciam de forma cristalina na sua poesia, especialmente nos sonetos em que retratou a miséria humana escondida nos guetos da periferia, nas dependências das drogas que escravizam os jovens, na exploração dos emigrantes, na servidão dos camponeses, nos desempregados sem esperança nem futuro, nas crianças abandonadas na rua e nos velhos enjeitados nos lares.


Poeta e sentimento na voz do povo
Nunca considerei o Ferradeira de Brito como um poeta popular, mas, na sua ingénua simplicidade, era dessa maneira que ele próprio se sentia. Face às suas origens e parca instrução, sentia-se próximo do povo. E, por isso, dizia que a sua poesia era a expressão natural da voz povo, desse clamor que ninguém escuta e a que ninguém liga, por ser precisamente a expressão de quem sofre, de quem se desvaloriza e se despreza.

Devo esclarecer que o Ferradeira de Brito, embora se sentisse um homem do povo, nunca foi pobre, nem passou por dificuldades económicas. Como casou jovem, cedo teve de angariar o sustento, montando o seu negócio no mercado público de Faro, onde granjeou prestígio pela dedicação ao trabalho e pela honestidade. Nessa altura, sentiu o rebate das novas ideias e depressa percebeu que a falta de liberdade era a origem de todas as carências e desigualdades. Com o advento do novo regime apoiou as ideias reformistas, e aderiu ao ideário socialista.

Na sua maneira de entender, face à realidade e às circunstâncias do tempo, achou que o socialismo era uma proposta viável para alcançar a justiça social, pela qual tanto clamava na sua poesia e nas ideias que expendia entre os amigos. Até ao fim da vida não se desviou desses princípios, embora sentisse algumas desilusões, suscitadas pelos novos desafios europeus e pelas incongruências dos políticos.

Apesar de possuir um enorme talento literário, com obra publicada, avaliada e respeitada pelos seus pares, nunca o meu amigo Ferradeira de Brito consentiu que o tratassem por poeta, contista ou dramaturgo, embora fosse assim designado por aqueles que lhe conheciam a obra. A sua postura serena e tranquila, o seu ar seráfico de sorriso esfíngico, evidenciavam a sua bonomia, franca e leal, a que se acrescentava uma aparente placidez espiritual, muito peculiar nos poetas.
Mesmo no convívio, que ao longo dos anos foi mantendo no seio da «Tertúlia Hélice», não gostava de dar a sua opinião crítica sobre a obra alheia, nem de se erguer acima dos outros, porque a ninguém se achava superior. Era, em todos os aspectos, um humilde cidadão, que irradiava entre os amigos a serenidade própria de quem havia feito as pazes com a vida.

Escorço biográfico do poeta
Abílio Ferradeira de Brito, nasceu a 24 de Fevereiro de 1942, no lugar das Pontes de Marchil, então integrado na freguesia de S. Pedro, hoje pertencente à recém-criada freguesia do Montenegro, no concelho de Faro.

Quando jovem sentia a timidez da sua escassa convivência social, razão pela qual se considerava um rapaz de poucas falas, ensimesmado nos seus pensamentos, reservado e pouco expressivo. Mas, sentia uma profunda sensibilidade interior para assimilar a realidade espiritual das coisas, deixando-se enlevar pela paixão da vida. Cedo amou e foi amado, experimentando na linguagem dos poetas a paixão que verdadeiramente sentia. O rebate da poesia estava-lhe na alma, a tal ponto que ainda nos bancos da escola começaria a compor versos e canções de amor. A sua estreia literária ocorreu em 1953, nas colunas de «O Pintassilgo», órgão das escolas de aplicação anexas ao Magistério Primário de Faro, cujos alunos asseguravam a redacção e edição daquele simpático jornal escolar, que se manteve em publicação até Junho de 1960.

A partir de então, e a pesar da sua tenra idade, não mais parou de escrever. Fazia-o com a fervorosa paixão de um amante das letras, num incontrolável impulso criativo, sem critério nem objectivo. Escrevia, corrigia e rasgava, até aperfeiçoar a mão. Começou a guardar, sobretudo poemas e quadras, que foi arquivando com desvelo, na esperança de um dia os revelar à estampa.

Na década de setenta, desenvolveu o gosto pelo teatro, promovendo nesse âmbito várias iniciativas, como encenador e director artístico, daí resultando a fundação do Grupo Cénico do Montenegro, do Grupo de Teatro Experimental do Patacão, e do Grupo de Teatro de Mar-e-Guerra, todos a operar em Faro. Para manter essa actividade cultural chegou mesmo a escrever em verso a peça «O Auto dos Lobos», inspirada no teatro vicentino, que levou à cena por todo o país. O sucesso e originalidade da peça mereceu a aprovação oficial do governo, sendo publicada, em 1976, pelo então designado Ministério da Educação e Investigação Científica.
Em face do seu prestável espírito de dedicação à causa pública, viria a ser escolhido para presidir à Comissão Administrativa da Junta de Freguesia de S. Pedro, de Faro, desempenhando essas funções de forma honesta, responsável e competente. No âmbito associativo, fez parte durante vários anos dos corpos directivos do Clube Desportivo do Montenegro.

Curiosamente houve um tempo em que o Ferradeira de Brito, juntamente com o poeta Telmo Silva (Telmoro) e os músicos Alberto Carlos e Manuel Cardoso, cultivou o gosto pela música ligeira, tendo composto e até interpretado algumas canções, que seriam mais tarde editadas em CD, mas já na voz de outros intérpretes.

A recordação de uma amizade
Conheci já tarde o poeta Abílio Ferradeira de Brito. Estávamos nos finais de 1998. Mas depressa me apercebi da sua sensibilidade cultural, pela forma como vibrava e se empolgava na realização de iniciativas que pudessem contribuir para o engrandecimento da sua cidade natal. Mas, apercebi-me também do seu coração sofredor, macerado pelo desgosto de ter perdido um filho na flor da idade, sentindo-se a partir daí como um naufrago, solitário e triste, sem esperança de sobreviver incólume às tempestades da vida. Verifiquei depois que a poesia, emergente da dor que lhe corroía a alma, despontava-lhe espontânea, sincera, dolente e profunda, como uma âncora a que o naufrago de outrora se agarrava agora para escapar aos negrumes da tristeza que lhe devorava o espírito. Apoiado e incentivado pelo poeta Tito Olívio – a quem os mais próximos chamam Mestre, na mais fiel tradição humanista – acolheu-se ao convívio da Tertúlia Hélice, onde pontificou não só pela sua assiduidade, como também pela sua produtiva contribuição poética.

Três figuras da cultura e da poesia algarvia – Tito Olívio, Quina Faleiro e Ferradeira de Brito – presentes numa exposição de pintura, realizada em Faro, nos primeiros anos deste milénio. O Ferradeira com a sua cabeleira de prata era uma presença inconfundível nos eventos culturais promovidos pela AJEA.

Começou por escrever quadras, no mais genuíno sentimento popular, como uma espécie de humilde tentame de quem não se sente com a eloquência necessária para professar o culto de Orfeu. Mas fê-lo com tão surpreendente qualidade filosófica, talvez por inspiração aleixiana, que logo o “Mestre” o aconselhou a publicá-las em livro. Foi assim que no ano 2000 surgiu o seu primeiro livro, sugestivamente intitulado «Minha Voz… a voz do povo». Tive nessa altura, a honra de apresentar a obra na antiga Livraria Odisseia, fundada pelo saudoso Luís Guerreiro, perante um numeroso auditório.

Importa dizer que este livro é uma abundante compilação de quadras, de apurado recorte filosófico que, em certo sentido, parecem inspirar-se no estilo aleixiano. Na verdade, a quadra é a expressão sentenciosa mais peculiar do nosso povo, sendo exemplo disso as quadras que nos Santos Populares adornam os vasos de manjerico, que os alfacinhas colocam na soleira das suas janelas. O imortal poeta Fernando Pessoa realçou o gesto, ao afirmar que “a quadra é o vaso de flores que o Povo põe à janela da sua alma”.
Os escolhos da vida impediram Ferradeira de Brito de continuar a publicar, de uma forma mais constante, a sua vasta e relevante obra poética. Acompanhei esses anos a par e passo, comungando não só das ilusões como também dos frustrantes desapontamentos, suscitados pelo alheamento a que as instituições responsáveis pela cultura votavam os autores locais, dando todo o apoio, financeiro e logístico, aos que de Lisboa, com o ar superior da sua emproada soberba, nos vêm tratar como inferiores e provincianos. Quantas vezes lhe ouvi os queixumes de natural repúdio, contra essa espécie de colonialismo cultural a que temos estado sujeitos. Vivemos ainda hoje debaixo do centralismo, ditatorial e castrador, que caracterizou o regime anterior, cujos defeitos estranhamente continuamos a imitar. Tarda em surgir no horizonte político o verdadeiro libertador desta opressão alisbonada a que se tem submetido a cultura algarvia.

Apesar de tudo isso, e remando sempre contra a maré, Ferradeira de Brito foi dando a público, nos órgãos regionais, algumas das suas produções líricas, principalmente no «Jornal Escrito» e no «Nó Vital», órgãos de informação e cultura, fundados pela AJEA – Associação dos Jornalistas e Escritores do Algarve, para dar espaço e repercussão aos escritores algarvios. As suas produções poéticas e os seus textos dramatúrgicos foram-se acumulando até que, em 2009, puderam ver a luz da estampa, numa torrente editorial de vinte títulos lançados ao público de uma só vez.
Também nesse dia, verdadeiro jubileu da poesia e da prosa algarvia, tive a honra de estar presente, para fazer a apresentação do poeta e meu amigo pessoal, Abílio Ferradeira de Brito, que ontem, 1 de Junho de 2021, faleceu de forma tão repentina quanto inesperada, deixando em todos os seus familiares e amigos uma mágoa de eterna saudade. Morreu aos 79 anos de idade, legando-nos uma obra digna do maior respeito e veneração.

Termino evocando a sua obra através da leitura de um dos seus humildes sonetos, singelamente intitulado “Tarde”, no qual o poeta alude à tristeza que lhe ensombrou a tarde da vida, numa árdua caminhada cujo desfecho todos desejamos retardar, o mais tarde que for possível:

A tarde, que na tarde vai morrendo,
nasce para morrer no mesmo dia;
nos restos desta tarde vai finando
o pouco que em mim resta de alegria.
No definhar suave vou vivendo,
mas sempre a cogitar a nostalgia
que dentro do meu peito vai roendo
amarguras de um rol que eu não queria.
Vai a tarde no tempo a caminhar
até que a noite chega e vai ficar
esperando o nascer de outra alvorada.
E nós com ela vamos mais além,
o tempo é de todos, mas ninguém
consegue retardar a caminhada.

Sobre o autor

jestevaocruz

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